Somos humanos, mas afinal o que somos?

Lendo jornais e agências de hoje, vi várias vezes uma mesma notícia que chamou minha atenção:"Polícia russa descobre menina criada presa com cachorros e gatos". Nem tanto pela relevância, mas pela estranheza. Li para saber do que se tratava. Acredito que por curiosidade ou interesse muitos também o fizeram. Quem não fez, pode seguir o link acima que irá saber do que se trata. A despeito de todas as informações da matéria serem passíveis de suscitar comentários e questionamentos, enquanto lia só conseguia me lembrar de um filme que já assisti a primeira vez quando comecei a estudar jornalismo: O enigma de Kaspar Hauser.

O filme do cineasta alemão Werner Herzog, estimula de forma surpreendente a discussão acerca do conceito de cultura, e de como esta afeta a vida dos seres humanos. O modo como é apresentada a história de um rapaz que durante anos foi mantido encarcerado em uma torre, desde a mais tenra infância, sendo completamente excluído dos processos de sociabilização e do contato com outros seres humanos, e as dificuldades que ele irá enfrentar, já adulto, ao ser lançado em meio à sociedade, sem estar minimamente preparado para atuar nela, nos convida a refletir sobre o papel da cultura, enquanto mecanismo de formação dos seres humanos.

Na primeira parte do filme nos é apresentado um ser, completamente excluído dos processos sociais, inabilitado até mesmo para dominar suas funções motoras e que somente pode ser identificado pelo nome de Kaspar Hauser, mediante a carta que seu carcereiro deixou-lhe nas mãos. Ao ser abandonado por este em uma praça pública, para que pudesse ingressar nas forças militares, e ficar sob a proteção do governo, Kaspar não possui mecanismos que lhe permitam sequer ter reações de medo ou espanto, frente a todas as novidades que se apresentam.

Ele chega a ficar sob a proteção do governo, mas na cadeia pública onde é encarcerado novamente. Neste local, por intermédio do carcereiro, terá seus primeiros contatos com os processos de socialização. Enquanto isso, na pequena cidade a curiosidade em torno desta estranha figura aumenta a cada dia. Pessoas de vários lugares vão à cadeia para ver o enigmático Kaspar Hauser, surgem inúmeras versões para a sua aparição e para justificar o estado em que se encontrava, e as próprias autoridades da cidade acabam por autorizar sua exibição em um circo de excentricidades.

A questão que se pode observar com maior nitidez neste momento do filme, irá confrontar-se com os conceitos de determinismo geográfico e determinismo biológico, que era o pensamento predominante na época. A cada nova narrativa que surge relativa a origem de Kaspar, eles refutam baseados no pensamento que se ele fosse oriundo deste ou daquele lugar, seria exatamente como seus compatriotas, bem como se fosse de família nobre, a elegância e a nobreza aflorariam espontaneamente em sua pessoa. Se assim fosse, só poderíamos concluir que Kaspar veio do nada, uma vez que não apresentava nenhum dos comportamentos atribuídos a grupos sociais conhecidos, tampouco características sociais ou manifestações de caráter que pudessem caracterizar uma hereditariedade humana. Buscar as origens de Kaspar baseado nestes conceitos é, portanto, dedicar-se a tarefa inútil e frustrante, pois como disse Roque Laraia em seu livro Cultura: um conceito antropológico, “as diferenças existentes entre os homens, portanto, não podem ser explicadas em termos das limitações que lhes são impostas pelo seu aparato biológico ou pelo seu meio ambiente.” (p.24)

Após o episódio do circo, Kaspar fica sob a proteção de um tutor que o recebe em sua casa e passa a ensiná-lo, na tentativa de recuperar os anos perdidos de sua educação. Durante esse período várias são as dificuldades que ele e seu tutor irão enfrentar, algumas delas referentes a dificuldade de Kaspar na construção das categorias de pensamento, visto que ele é muito preso ao “concreto” , já que não teve conteúdos suficientes que lhe permitisse desenvolver com clareza as demais categorias. Na etapa inicial do filme, ele sequer consegue posicionar-se de forma apropriada frente ao perigo, ou a qualquer outra coisa que fosse abstrata. E somente muito tempo depois de estar vivendo com seu tutor, é que consegue estabelecer a diferença entre sonho e realidade. Fica claro que a assimilação de experiências para construção das categorias do pensamento, ocorre com maior facilidade na infância, pois Kaspar, apesar de esforçado, tem muita dificuldade para desenvolver esta etapa da sua aprendizagem.

Outro aspecto importante reporta a ligação dos seres humanos com o código de seu grupo social. Somente dominando a linguagem os indivíduos podem se comunicar com seus pares, e comunicando-se é que se certificam de estarem inseridos no grupo. Quanto mais Kaspar avançava no domínio da linguagem, mais integrado ele parecia para a sociedade, apesar de permanecer estigmatizado pelo caráter exótico de seu “surgimento” na mesma. Pessoas vinham vê-lo, não mais para admirar a aberração, mas para conhecê-lo e avaliar seus progressos de aprendizagem.

O filme irá então avançar para seu trágico final, pois para uma personagem misteriosa, os avanços comunicacionais de Kaspar parecem representar sério perigo, e ele então o mata. Após sua morte, o corpo de Kaspar Hauser é submetido a autópsia, onde os legistas descobrem uma diferença de formação e de tamanho em partes de seu cérebro. A cidade agora pode descansar em paz, está desvendado o enigma de Kaspar Hauser! Aquilo que poderia apontar uma conseqüência dos problemas enfrentados por Kaspar, é tido como a causa dos mesmos. As pessoas se tranqüilizam, haviam encontrado as respostas! A morte de Kaspar tornou-se a única forma de conseguirem estas respostas, e de certa forma, de se livrarem do incômodo causado pela sua presença, sempre tão diferente dos demais, sempre destoante do grupo.

Durante todo o filme uma questão maior está sendo apresentada: até que ponto o ser humano é um animal amarrado a cultura? Entende-se por cultura, o conjunto de regras e simbolismos adotados por grupos humanos, cuja principal função é permitir que se estabeleçam mecanismos de convivência e se atenuem as diferenças individuais entre membros de um mesmo grupo, possibilitando a manutenção do grupo. Podemos também pensar na cultura como um “instrumento” dos indivíduos do grupo, que lhes possibilita a integração com este. Ao ser afastado dos mecanismos culturais durante seu crescimento, Kaspar tornou-se algo que nem se podia dizer animal, visto que privado de instintos que regessem sua existência, nem humano, uma vez que não dominava os mecanismos que fazem com que os homens possam estabelecer laços com seus pares e com o mundo, garantindo assim a própria existência. Segundo Clifford Geertz, “o homem é um animal amarrado às teias de significados que ele mesmo teceu.”. Isto nos leva a ponderar acerca da profundidade da relação do homem com a cultura, pois a cultura é um produto do homem, convencionada por ele, porém uma vez instaurada, ele não mais pode viver, ou mesmo se dizer homem, se privado dela. A influência de um sobre o outro é tanta, e sempre tão constante, que chegam a parecer um só.


Bibliografia

LARAIA, Roque de B. – Cultura: um conceito antropológico
RJ, Jorge Zahar, 1984

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