Agentes sem Lei e sem Ordem


A atuação dos agentes da Empresa Guarda Municipal na apreensão de mercadorias de vendedores ambulantes no Rio de Janeiro é conhecida por todos. E incentivada e exaltada pela administração pública municipal. Quase todos os dias são apresentadas na mídia imagens de operações de repressão ao dito comércio ilegal. Ainda assim, sempre que os agentes se aproximam a população já fica apreensiva, tenta avisar aos ambulantes, ou ajudar de alguma maneira a evitar que o mesmo perca seus produtos. Atitude compreensível em uma cidade que sofre com a falta de empregos formais, a crise econômica, o crescimento desmedido da violência urbana.

Por volta do meio dia desta sexta feira, 20/02, guardas municipais fardados e em veículos oficiais abordaram R.A., 38 anos, que vendia água e refrigerantes na rua Aurélio Figueiredo, próximo à Rodoviária de Campo Grande. O calor era intenso. As garrafas eram retiradas com tranqüilidade do isopor e colocadas em um saco. Não havia um fiscal de fazenda sequer acompanhando os guardas municipais e o saco não foi lacrado, bem como nenhum auto de infração foi lavrado. Transeuntes observavam penalizados por conhecerem bem o vendedor que trabalha há dez anos no local.

A comercialização de alimentos, inclusive de água e outras mercadorias é uma atividade regulamentada pela prefeitura. De acordo com a Lei Nº 1.876, de 29 de junho de 1992, que caracteriza o comércio ambulante e determina quem pode ser considerado habilitado para exercer essa atividade, R.A. pode pleitear um registro para realizar seu trabalho, assim como os demais deficientes físicos, carentes com mais de 45 anos, desempregados a mais de um ano e egressos do sistema penitenciário. As leis municipais prevêem as normas para que sejam concedidas licenças para o comércio ambulante, determinado inclusive as sanções cabíveis no caso de irregularidades. No entanto, a burocracia que envolve este tipo de concessão, e a taxa cobrada pela prefeitura para a utilização de área pública, no valor de R$ 380,00, dificultam aos mais necessitados, que precisam garantir uma renda imediata, a tranqüilidade de trabalhar dentro do amparo da lei.

As sanções legais, regulamentadas pelo prefeito César Maia em 1994 para todo o comércio ambulante, incluem a apreensão das mercadorias e o pagamento de multa, mas também exige que seja lavrado um auto de apreensão, considerado indispensável, além do encaminhamento dos produtos aos locais determinados pela Secretaria Municipal de Fazenda. Legalmente, até pelo fato de serem funcionários celetistas de uma empresa de capital fechado e não servidores públicos, os agentes da Guarda Municipal não se qualificam para esta tarefa. Em operações oficiais, divulgadas para a grande mídia antecipadamente, pode-se perceber que a tarefa de abordar, autuar e mesmo confiscar, se assim for o caso, cabe aos fiscais da Fazenda. A Guarda Municipal acompanha os servidores municipais como força de apoio. Mas o que se vê no cotidiano das ruas da cidade, via de regra, é sua atuação independente, como se fossem qualificados a atuar como agentes de Segurança Pública, e pudessem decidir autonomamente sobre suas competências.

Esse tipo de atitude arbitrária vem sendo questionado juridicamente pelos cidadãos cariocas. Em outubro de 2006, a 13ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio anulou por unanimidade todas as multas de trânsito aplicadas pela Guarda Municipal. O relator do processo, desembargador Ademir Pimentel esclareceu que a decisão dos juristas se baseava em dois pontos fundamentais: primeiro, na ilegalidade da emissão de multas por funcionários de uma sociedade comercial, que não são investidos em cargo públicos nem mesmo como celetistas; segundo, na inconstitucionalidade de uma empresa de caráter comercial se beneficiar, ainda que em parte, da renda obtida com o recolhimento das multas. O mesmo argumento pode se aplicar a outros excessos da Guarda, inclusive no que diz respeito à forma truculenta com que aborda os ambulantes.

A Constituição Federal, assim como a Estadual, prevê a possibilidade de criação de Guardas Municipais, que deverão ser destinadas à proteção dos bens, serviços e instalações do município. Sua competência principal deverá ser a segurança patrimonial. O Rio de Janeiro incluiu a estas funções previstas constitucionalmente, o apoio ao turista nacional ou estrangeiro e a trato com a comunidade para assegurar à população o direito de utilização dos bens públicos. Essas diretrizes são apresentadas no próprio site da Guarda Municipal, contudo, seus funcionários parecem não conhecer bem suas funções. Despreparados, truculentos, debochados, fazem aquilo que lhes interessa, se apropriando do que não lhes pertence, tratando a população com descaso e pouca educação. Acreditando-se agentes de segurança pública, que não são, fazem questão de reproduzir a imagem negativa dos maus policiais, tão combatida pelos legítimos servidores da Segurança Pública.

O desrespeito para com o cidadão comum é tão notório quanto sua pretensão de impunidade. Esse fato só pode ser conhecido dos leitores porque estava com minha câmera em mãos, e não me furto jamais ao chamado da profissão. Não havia uma equipe de cobertura, somente uma pessoa, jornalista e antes de tudo cidadã, que passando pelo local decidiu registrar a cena e entregar um cartão profissional ao ambulante para saber se ele conseguiria ter acesso a sua mercadoria, já que a ação parecia totalmente irregular. Ele me informou que nem havia mais o que fazer, que sabia que havia “perdido” a mercadoria e não era a primeira vez que aquilo acontecia desta forma. Ao perceber uma pessoa fotografando a ação o motorista do carro avisou aos demais, um pouco apreensivo. Mas, confundidos pelas bolsas de compras e pela aparência informal, os agentes pouco se importaram. Após anotar a placa da Kombi oficial, LOC 9774, fui abordada com certa zombaria por uma agente que me perguntou: “O dona, quer mais nada não? Se quiser eu mostro minha identidade.”. E rindo com escárnio foram se apinhando com os demais sacos de produtos dentro do veículo. Voltei a conversar com R.A., que contava para a esposa sobre o prejuízo por telefone. Ele pediu-me para não ser identificado, pelas razões óbvias. Teme represálias. Muito abalado, ele dizia que iria ficar por ali mesmo, pelas ruas, tentando pensar no que iria fazer.

Senti-me aviltada como cidadã antes de tudo. Afinal, ainda que fossem servidores públicos, que não são, eles não estão acima dos cidadãos, que podem e devem questionar sim toda vez que assistirem ao descumprimento das leis, ou pior, a perversão destas. Como cidadãos aceitamos nossas leis, que devem ser cumpridas e não utilizadas de maneira irregular e duvidosa por pessoas despreparadas. Reza o ditado que o exemplo deve partir de casa. Então que se faça a Ordem, mas que esta comece pelo bom exemplo daqueles que representam a ação municipal nas ruas. Caso contrário, não passará de algo nos modelos do “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”, uma permissão silenciosa para o crescimento de ações de natureza viciosa, incapazes de produzir qualquer resultado positivo para a sociedade carioca.

Comentários

Anônimo disse…
Excelente texto, Mônica.

Mas toma cuidado, porque nessas situações não é difícil sobrar pra você também...
Kiko disse…
Mônica!!!!!!
Fiquei realmente impressionado com seu texto.
Concordo em gênero, número e grau com você.
Já presenciei cenas ridículas em que a Guarda Municipal excedeu os limites e já até discuti certa vez com um que, sem argumentos, fingiu não estar ouvindo e levou o material do rapaz.
Não sei se o vendedor precisa ou não e isso não cabe a mim julgar, mas enquanto ele estiver vendendo e NÃO ME ASSALTANDO, acho justo sim. Num país onde abrimos mão dos míseros e poucos sonhos que temos em troca de honestidade e não somos recompensados por isso, acho justo alguém trabalhar como pode.
Tudo aqui nos é tomado: quando não são os bandidos (que são cria de um governo infrutífero e de uma população indiferente e inerte), é o próprio povo porque o governo roubar é reflexo de um povo mal informado, mal instruído e fracassado que busca culpar os mais altos pelos seus erros, sem nem ao menos lembrar que cada um é um degrau e, se aos poucos esses degraus forem ajustados, o acesso ao palco será mais restrito e só os dignos terão acesso.
Acredito que a Lei deva ser cumprida, mas de forma coerente e irrepreensível, afinal, eles devem dar exemplos e não (com o perdão do termo) ROUBAR material.
Mais uma vez, meus parabéns.
Você conta com meu apoio.
Excelente texto sobre um caso vergonhoso. E pensar que muitos apresentadores de telejornais ainda apóiam este tipo de roubo camuflado. Hoje em dia não há mais limites para prejudicar as pessoas e fazer disso um show para ser vendido nos meios de comunicação. Lamentável!
Katia Medeiros disse…
Olá
Fiquei muito assustada quando vi na televisão que um guarda municipal havia morrido ...é também atribuição de guarda municipal cuidar de trânsito ???
O que eu sei é que guarda municipal aqui no Rio de Janeiro foi criado depois que uma criança, em sua escola municipal em Jacarepaguá, sofreu um acidente que eu não sei dizer ao certo o que foi, mas conheço a pessoa que inicialmente redigiu este Projeto de Lei, que agora é Lei, por acontecer em colégio que sua filha também estudava e seria para preservar as crianças e idosos em praças públicas e escolas e não portariam armas.
Mas agora eles até morrem atropelados ...

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